A transformação da comida ordinária, é que faz o ato de cozinhar e comer um estudo. A ideia de misturar técnicas e ingredientes, é algo maravilhoso. É indiscutível que cada cozinha apresente sua especificidade, sua identidade que precisa ser conservada e enaltecida. Mas não vejo como pejorativo a ideia de se misturar o novo com o clássico. Muito pelo contrário. Esse é o caminho da inovação! É desnecessário dizer que é preciso respeitar o paladar e através da sensibilidade aplicar a dose certa de bom senso. Venho de uma cozinha clássica francesa, e nem na faculdade encontrei unanimidade neste classicismo.
Há algo de intocável em tudo que se torna eterno. E existem obras que ao serem modificadas, são destruídas, mas a gastronomia não é uma delas. Repensar uma receita, ou aprimorar uma técnica é também uma forma de perpetuar e reverenciar. Claro que existe uma responsabilidade grande inerente neste aprimorar, assim como o devido respeito em qualquer criação baseada em clássicas receitas.
E isso é bom. Afinal a cozinha precisa ser mutante, precisa estar em movimento contínuo. O ser humano é assim, por que sua comida deveria ser diferente? Assim nasceu a cozinha contemporânea no Brasil e ela tem como principal característica a sua flexibilidade na forma de preparar e apresentar os pratos. Sua origem está nas tradicionais cozinhas que conquistaram o mundo: a francesa, a italiana, a espanhola, a portuguesa, a árabe, a oriental e a brasileira.
Na Cozinha Contemporânea se permite reunir elementos de várias tradições culinárias num único prato. Ela faz uma síntese das culturas predominantes. Busca o melhor de cada cultura e o adapta com a praticidade exigida nos dias de hoje e às disponibilidades do mercado e da estação. Praticar a Cozinha Contemporânea tornou-se possível com a distribuição global de produtos agrícolas e por causa do domínio tecnológico que o homem obteve na relação sobre clima e solo. Este avanço permitiu encontrar produtos de origem longínqua em lugares nunca antes imagináveis.
De uma nova cozinha, nasce um novo cozinheiro.
Hoje o profissional que opera uma cozinha, e que a chefia, não é o mesmo de 30 anos atrás. Hoje ele é multifacetado, ele precisa saber um pouco de tudo. Marketing, finanças, administração, rh, nutrição, direito trabalhista, hidráulica, elétrica… Essas são algumas das características que eu adquiri nesses sete anos de restaurante. E isso é só o começo. A boa gestão de um restaurante e alguns conhecimentos técnicos não são as únicas ferramentas que levam um negócio a prosperar. A busca por ingredientes de qualidade e a preocupação econômica e social diante de sua carta de fornecedores também são de extrema importância para o desenvolvimento sadio do empreendimento. Porém, diante das riquezas naturais brasileira (traduzida em uma variedade de insumos), leis e costumes ainda lutam contra nosso crescimento.
Um exemplo disso foi, durante mais de 13 anos, a falta de incentivo para um produto que hoje consegue alavancar a economia de um grande estado brasileiro, Minas Gerais.
O queijo da Serra da Canastra que é feito a partir de leite cru, não possuía autorização das autoridades sanitárias, para circular em território nacional. Foram anos de luta (mais de 30 mil família prejudicadas por não conseguirem escoar sua produção) para conseguir viabilizar a comercialização dos produtos fora do Estado. Eram proibidos, por determinação do Serviço de Inspeção Federal (SIF), circular fora do estado de Minas, antes de sessenta dias de maturação. Tal burocracia retardou o crescimento de uma região inteira, que sempre foi representada por produto com identidade gastronômica nacional tão forte! Para possibilitar a venda do queijo minas para fora do estado de MG, foram criados centros de maturação do queijo em Medeiros (Serra da Canastra) e em Rio Paranaíba (Alto Paranaíba), para controlar a qualidade dos produtos. Tal solução poderia ter sido implantada há muito. Infelizmente demorou. Mas foi uma vitória importante para Minas, para a Gastronomia, para o Brasil!
Não custa lembrar que na França, por exemplo, onde o queijo tem importância cultural e econômica, as leis são diferentes. Há selos de certificação de origem do produto. O pequeno produtor tratado com o devido respeito que merece! O mesmo cenário pode ser encontrado na Itália e em outros países. Mas estamos mudando este cenário. De forma gradual, mas a mudança está ocorrendo.
Se assim nossas autoridades tratam nossos produtos, entendam como são tratados nossos profissionais… A superestimada gastronomia, de chefes ricos e requintados, vem de encontro à subestimada e maltratada carreira profissional no Brasil. Um mercado que em sua totalidade, paga mal e muitas vezes sub qualifica sua mão de obra, para que este cenário não seja modificado. O mercado se alimenta de baixos salários e uma mão de obra (ainda sem uma formação acadêmica, na sua maioria) que muita das vezes, não reflete em nada o valor do trabalhador em questão. Já tive a oportunidade de trabalhar com grandes cozinheiros que não tinham nem o primeiro grau e eram profissionais impecáveis. Assim como tive o prazer de dividir bocas de fogão com outros tão bons quanto, com diplomas de gastronomia e experiências internacionais. Em uma cozinha profissional não pode se esconder um mau profissional. Ou você sabe ou não sabe (e aprende). Os fracos não têm vez. Não é possível se esconder e fingir atrás de uma panela.
Agora eu te pergunto, se o salário do profissional que levou conhecimento e valores para nós e nossos filhos é uma vergonha (professores), você acredita que uma pessoa que tem a responsabilidade de preparar a comida que alimenta você e toda sua família, ganha bem? A moda da gastronomia não fez questão de trazer nas capas de revista, as madrugadas em que os cozinheiros depois de um dia inteiro de trabalho, lavam toda a cozinha (chão, fornos, fogões, coifas…), as jornadas duplas nos finais de semanas e feriados, os ferimentos e problemas de saúde decorrentes da profissão…
Mas antes que você pense em responder, eu te adianto que nós, cozinheiros, escolhemos sim por tudo isso. Motivados por uma paixão pela comida, que só quem possui, entende. Só não escolhemos pelo fruto deste trabalho no final do mês, no formato de contracheques magros e cheios de descontos governamentais… Mas ainda acreditamos no que fazemos. Acreditamos na gastronomia nacional, acreditamos em tudo que o Brasil representa e representará no mercado nacional e mundial. Somos um país de uma pluralidade cultural e ao mesmo tempo uma identidade tão marcante, que nosso futuro está fadado ao sucesso, só gostaríamos que este sucesso fosse para todos.
GUSTAVO GUTERMAN
Graduado em Gastronomia no Centro de Formação Internacional Alain Ducasse e pós graduado em Segurança de Alimentos pelo SENAC SP.
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