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Um conto entre panelas

por | ago 17, 2017 | Colunistas

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Ao abrir os olhos o quarto ainda estava escuro. Apesar da manhã quase estar virando tarde, parecia estar muito cansado ainda. Parecia que tinha ido se deitar há uns 5 minutos. Já havia passado uma noite inteira e o seu corpo parecia exausto. Um pouco de pó e água na cafeteira. Ligou e entrou em um banho demorado. A água gelada batia nas suas costas, quando aquele cheirinho de café invadiu o banheiro. Enxugou-se lentamente, aproveitando aquela sensação de conforto que um banho demorado proporciona.

Saiu com o cabelo ainda bagunçado do banheiro e abriu a área de serviço, uma pequena varandinha, onde fica sua horta. O sol batia naquelas folhas verdes de aipo, cebolinha, manjericão, tomate cereja, hortelã, pimenta e salsa. Como de costume, antes mesmo de fazer seu desjejum, molhava cuidadosamente sua pequena e linda plantação.
Em uma frigideira, um pouco de manteiga, cebola cortada em pequenas tiras. Enquanto ficavam bem macias e douradas adicionou finas rodelas de aspargos frescos. No momento que tudo estava incorporado em uma mistura extremamente cheirosa, dois ovos, sal, pimenta e uma cebolinha bem picada finalizaram aquele delicioso prato.

As torradas já estavam cheirando quando se sentou a mesa e serviu aquele café de aroma que agora já tinha tomado a casa inteira, dividindo de forma justa o espaço com aqueles ovos mexidos e aquelas torradas fresquinhas. Em cima da mesa, seus óculos e o livro que estava terminando na noite anterior, antes de desmaiar em cima daquelas páginas, por tamanho cansaço. Depois de alguns capítulos e algumas torradas, resolveu sair para uma caminhada. Destino? Praia.

Estava frio, mas o sol cuidava da temperatura que aquele vento gelado queria roubar. A saudável disputa fazia o clima ficar perfeito. Quando quase sentia frio, vinha o sol e aquecia, quando uma gota de suor quase se formava vinha o vento e refrescava.
Assim a caminhada durou horas. Em passos lentos, os pés afundavam na areia, volta e meia uma onda batia na canela…

Voltou para casa. A louça do café esperava pacientemente pela sua volta. No som agora, tocava um blues bem tranquilo, e entre goles de um mate bem gelado terminou de lavar caneca, prato, frigideira e alguns talheres. Um banho, mais gelado que o primeiro. Enrolou-se na toalha e foi em busca de uma roupa para trabalhar. Camisa branca, uma calça jeans e um tênis. Mais umas 9 horas fazendo o que gostava tanto… O uniforme já o esperava no trabalho.

Era cozinheiro. Passava horas do dia no meio de panelas, temperos, massas, carnes, peixes, folhas e legumes. Entre cores, cheiros e sabores. Tudo isso era aproveitado ao máximo. A cada lágrima de cebola (que os olhos se acostumavam cada vez mais e as lágrimas caiam cada vez menos), ou o barulho que o filé do cherne fazia aos ser colocado na frigideira quente, untada com manteiga e azeite, levantando um cheiro espetacular. Ou até mesmo o ruído da coifa, que já tanto fazia parte do seu dia, tornando-se quase imperceptível, diante de todos os outros sons mais importantes e menos repetitivos.

A rotina já havia educado olhos, ouvidos e narinas. Todos os sentidos se tornaram ferramentas imprescindíveis de trabalho. A melodia da cebola na manteiga, o perfume do brownie no forno, a tonalidade do gergelim que envolvia o atum. Cada um desses momentos dizia algo para sobre o cozimento de cada um desses alimentos.
A cozinha era sua segunda casa. Mas quando na loucura da cozinha, a impressora não parava de cuspir comandas, e o fogão abarrotado de panelas. A alegria de ver a casa cheia se misturava com a preocupação de tudo sair perfeito. Nesse momento ele buscava paz.

E a encontrava quando fechava os olhos por alguns segundos e lembrava-se do vento balançando as folhas da sua pequena horta, do o sol batendo nas folhas e no seu rosto e do cheiro que cada planta daquela exalava, ao ser regada.
Esses cheiros, cores e formas o acalmavam e por alguma razão, essa calma contagiava todos dentro daquela cozinha. E a noite que tinha tudo para ser agitava, se tornava funcional, harmoniosa, onde no meio de movimentos rápidos, tudo era coordenado, como uma grande orquestra, que poderia tocar a valsa mais linda, lenta e complexa, ao rock mais pesado, ritmado e contagiante do mundo!

E depois de horas a fio, a cozinha acalmava, e o salão esvaziava todos se olhavam com uma sensação boa de missão cumprida, e começava a faxina. Com o corpo doído e a alma recarregada por mais um dia de sucesso, o caminho para casa era feito com boas lembranças da noite, como os elogios trazidos pelos garçons ou clientes que vinham na janela de saída da cozinha, para simplesmente agradecer. Por esses pequenos momentos, todas as dores e cansaços, valiam a pena.

Em casa, sem fome, uma taça de vinho de uma garrafa aberta na geladeira, um banho quente, dentes escovados, um filme antigo na TV e sem perceber o sono chega e o leva para mais uma noite que vai durar uns 5 minutos, pelo menos é o que parece!


Gustavo Guterman

GUSTAVO GUTERMAN

Graduado em Gastronomia no Centro de Formação Internacional Alain Ducasse e pós graduado em Segurança de Alimentos pelo SENAC SP.

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