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Histórico do processo de Denominação de Origem

por | jan 9, 2019 | Bebidas, Colunistas, Enologia

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Este artigo foi originalmente publicado em parceria com Suely S. P. Quinzani e Arthur Marques, na Revista Hospitalidade, v. XI, n.1, jun. 2014.

A regionalização dos produtos possui elementos intrínsecos como o saber fazer individual e coletivo, o uso de possíveis práticas agrícolas, além da matéria-prima, todos considerados elementos diferenciadores essenciais para a certificação de um produto (ALBERT, 2008). Concentrando-se no aspecto gastronômico, Maciel (2002 apud GIMENES, 2008) exprime a regionalização como “identidades” nacionais, regionais ou locais, definindo os pratos típicos como cozinhas emblemáticas que servem para representar uma coletividade. Estas “cozinhas emblemáticas” nada mais são que parte de um discurso que visa ao reconhecimento. À medida que dão a conhecer o grupo ao qual pertencem, estas permitem o surgimento de pratos que, mais que representantes de uma cozinha regional, determinam grupos e passam a representá-los, como é o caso do churrasco e do acarajé citados anteriormente.

O objetivo de valorizar os produtos regionais é antigo; o primeiro registro data de 1666, quando na França o primeiro texto jurídico é elaborado no Parlamento de Toulouse, procurando-se definir e delimitar a produção de queijos, especificamente do tipo Roquefort. Posteriormente, em 1874, na Alemanha, cresce a discussão sobre uma possível diferenciação geográfica para reconhecer produtos locais ou permitir a propagação de marcas conceituais, independentemente do processo ou local de produção. Porém, é apenas em 1919, na França, que é registrada a primeira lei que reconhece a importância de determinados produtos agrícolas, fortalecendo a expressão denominação de origem, ou seja, o produto passa a ser reconhecido como local, delimitado por um espaço geográfico, impedindo que produtos iguais, mas produzidos em outras regiões, se utilizem da mesma nomenclatura.

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Assim, da necessidade de estabelecer regulamentações que pudessem ser mundialmente reconhecidas, nasce o processo de Denominação de Origem, definido por Chaddad (1996), com base no Acordo de Lisboa de 1958, como “o nome geográfico de um país, região ou localidade, que serve para designar um produto, nele originado, cuja qualidade e características devem-se exclusivamente ao ambiente geográfico, incluindo fatores humanos e naturais”.

Oficialmente o processo descrito acima é criado em 1919 e oficializado em 1935 na França sob o termo Appellation d’ Origine Controlée (A.O.C.), delimitando-se a área e termo para alguns tipos de vinhos e águas, tornando-se um dos mais importantes e antigos documentos jurídicos para a proteção da origem de um produto, além de servir para coibir o uso da falsa indicação geográfica (CHADDAD, 1996). Com o passar dos anos, na década de 60, seu uso estendeu-se ao leite, sendo que a partir de 1990 qualquer produto agrícola ou alimentício bruto/transformado pode recorrer ao uso da denominação (PEREIRA, 2001).

Diante das crescentes solicitações para reconhecimento de novos produtos, em 1947, o Instituto Nacional de Apelações de Origem (INAO) assumiu o status de assegurar a origem territorial dos produtos franceses na Europa, garantindo através de normativas específicas a qualidade destes produtos (CHADDAD, 1996), coordenando e controlando os produtos certificados. Segundo Pereira (2001), os termos de mecanismo jurídico para proteção da origem de um produto são um dos mais importantes e antigos sistemas para coibir o uso da FALSA indicação geográfica, sendo que originalmente o sistema de denominações de origem fora desenvolvido para normatizar as iniciativas quanto às fraudes que poderiam manchar a reputação dos produtores de vinhos na França, e prejudicar o comércio com a Inglaterra, secular apreciadora dos produtos franceses.

O INAO, segundo Chaddad (1996), passou a desempenhar um importante papel como instituição burocrática e, em conjunto com os Sindicatos de Proteção, a A.O.C. e os Conselhos Interprofissionais, organizou o sistema diante da expressiva importância social, cultural e econômica que este acabou assumindo no contexto do agronegócio francês. O sistema criado pelo INAO resguarda a qualidade do vinho francês, visando uma valorização extra para os produtores pela proposição de uma classificação vinculada às condições do terroir. Por outro lado, o mesmo sistema restringe a capacidade de inovação devido à rigidez do cumprimento das normas (MORAN, 1993). Reforça-se que o INAO mantém vigilância em todos os continentes para obter jurisprudência favorável à defesa e proteção das denominações de origem com a finalidade de influências na legislação dos países (BRABET; PALLET, 2006).

Atualmente, a marca A.O.C. significa a proteção do sistema de certificação de origem, encravado na cultura e na história, e seus benefícios sociais e econômicos constituem um prolongamento das atividades agrícolas, principalmente de zonas rurais desfavoráveis, que possibilitam a perpetuação da tradição original do produto (PEREIRA, 2001). Assim, segundo o INAO (1998), o produto reconhecido pela sua Denominação de Origem passa a ser um produto de forte tipicidade, sendo que a especificidade e a personalidade do produto resultam da integração dos componentes geológicos, climáticos, técnicos e humanos de uma origem geográfica específica – país, região ou localização.

Segundo o Assessorato allo Sviluppo del Sistema Agrícola (ITÁLIA, 1998 apud PEREIRA, 2001), alguns critérios devem ser analisados no que tange à estratégia de valorização de produtos de uma região fisicamente delimitada. Esses pontos são tradição histórica; gama de produtos típicos da região; produção disponível; técnicas de produção; características gerais do ambiente de produção; aspectos relativos à comercialização (oferta do mercado, preços médios, organização e logística de venda); avaliação da perspectiva de mercado, ou seja, a potencialidade comercial; interesse da comunidade; exigências manifestadas; ações locais para divulgação do produto, como feiras; e o perfil turístico do local.

Contudo, pode-se dizer que o sucesso de uma denominação de origem leva em consideração também outros fatores como a incapacidade de generalização e replicação de casos de valorização regional; agrupamento de produtos para elaboração de projeto coletivo; profissionalismo, apoio metodológico e competência específica; interdependência dos elos da cadeia produtiva; adaptação e melhorias dessa cadeia, com o estabelecimento de um nível de qualidade, adaptando e ampliando uma gama de produtos; investimentos em comunicação e marketing considerados fundamentais; necessidade de planejamento e visão a longo prazo com evolução para avanços importantes e, portanto, resultados palpáveis.

Um interessante exemplo deste conceito de denominação de origem é o queijo Torta de Cacer, típico da região da Estremadura, na Espanha. Feito de leite cru de ovelha e um coalho orgânico, é uma receita tradicional dos camponeses da região, cuja atividade principal é o pastoreio de ovelhas da raça merino (uma raça autóctone do local, para a extração de lã natural). Com o alto custo do preço da lã e o advento dos sintéticos, os produtores locais começaram a optar pelo abate dos animais em razão da maior procura pelo produto cárneo. Preocupado com o destino deste rebanho, o governo espanhol incentivou o subproduto: o queijo. Assim, atualmente, tornou-se um produto regionalizado, de um rebanho de ovelhas autóctones, cuja receita reflete a cultura e a tradição local e o savoir-faire, uma vez que usa outro ingrediente local: a flor do cardo, o elemento coadjuvante que produz o coalho deste queijo especialíssimo.

Apesar de caber ao Vinho do Porto o reconhecimento de ter sido o primeiro produto a receber uma Denominação de Origem, em 1756 ainda que na época não fosse caracterizado por essa nomenclatura, e de Portugal ser reconhecido como o berço dessa Denominação, os avanços políticos e legais devem ser creditados à França, já que neste país “as Apelações de Origem Controlada adquiriram uma expressiva importância sociológica, cultural e econômica, sendo consideradas parte do patrimônio nacional” (CHADDAD, 1996, p. 33). Como exemplos de produtos certificados podem-se mencionar os vinhos de denominação Bordeaux, Bourgonha e Champagne, bem como os queijos Roquefort e Camembert, de Normandie.

Porém, cabem outros exemplos, como a Alemanha, com o Vinho do Reno; a Itália, com sua Denominazione D’origin Controlata para queijos e vinhos, assim como o Chile e a Argentina, que legalizaram a Denominação de Origem para frutas e vinhos. Com o passar dos anos, as denominações de origem foram sendo aperfeiçoadas por meio de regulamentações (ARCURI, 1999 apud PEREIRA, 2001), sendo as principais destacadas abaixo:

  • 1883
    Convenção da União de Paris: Trata da proteção contra a utilização direta de uma indicação falsa em relação à proveniente do produto.
  • 1891
    Acordo de MADRI: Estende a proteção ao emprego de indicações geográficas falsas em símbolos, documentos, publicidade.
  • 1958
    Acordo de Lisboa: Define denominações de origem e institui e regulamenta o registro e a proteção internacional.
  • 1992
    Regulamento (CEE) nº 2081/92: Proteção e regulamentação internacional das indicações geográficas e das denominações de origem de produtos agrícolas e alimentares;
    Regulamento (CEE) nº 2082/92: Regulamentação internacional sobre certificações de especificidade de produtos agrícolas e alimentares.

Fonte: adaptado de Arcuri (1999 apud PEREIRA, 2001)

Em países como o Brasil, a discussão e uso de Denominações de Origem são recentes. Existe um descompasso entre as leis e a necessidade de se proteger o direito dos produtores nacionais. As primeiras leis que dispõem sobre indicações geográficas são os Atos Normativos nº 134 e nº 143 do Ministério da Indústria, Comércio e do Turismo, de 15/04/97 e 31/08/98, respectivamente. Ambos instituem as normas de procedimento e os formulários próprios a serem utilizados para apresentação de requerimento de registro de indicações geográficas. Contudo, a primeira indicação geográfica reconhecida pelo Poder Executivo só ocorreu em 2001. Aproveitando-se da Lei de Propriedade Industrial de 1996, o Decreto nº 4.062, de 21 de dezembro de 2001, definiu as expressões “cachaça” e “Brasil” e “cachaça do Brasil” como indicações geográficas.

Apesar desse avanço, poucas iniciativas nacionais seguem o mesmo caminho das legislações nos países europeus citados. Apenas em 2002, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI, órgão oficial brasileiro competente para conceder o registro da indicação geográfica, reconheceu a nomenclatura “Vale dos Vinhedos” como o primeiro certificado nacional de indicação de procedência para vinhos tintos, brancos e espumantes, tendo como titular da indicação a Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos – APROVALE, na região da Serra Gaúcha. Apesar desse reconhecimento pelo INPI, é apenas a partir de 11 de setembro de 2012 que o Brasil obtém a sua primeira Denominação de Origem, com o Vale dos Vinhedos. Ou seja, os produtores da serra gaúcha tiveram de aguardar dez anos pela Denominação de Origens Vale dos Vinhedos (D.O), norma que apresenta as regras de cultivo e de processamento e estabelece que toda a produção de uvas e o processamento da bebida deverão ser realizados na região delimitada do Vale dos Vinhedos. A produção na Serra Gaúcha abrange 72,45 km² nas cidades de Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul, sendo que a área de vinhedos alcança 2.123ha desse total.

Diante do crescimento das solicitações de Denominação de Origem para diversos produtos, tanto em âmbito nacional como mundial, começaram a surgir questionamentos acerca da real necessidade desse processo, assim como uma discussão sobre um possível protecionismo, aspectos levantados por produtores e regiões que foram excluídos desse reconhecimento legal.

REFERÊNCIAS

ALBERT, Aguinaldo Záchia. Borbulhas. Tudo sobre champanhe e espumantes. São Paulo: Senac, São Paulo, 2008.

BLUME, Roni; PEDROZO, Eugenio Ávila. As indicações geográficas: barreira não tarifária ou dinamizadora de desenvolvimento local/regional. XLVI Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural. Rio Branco, Acre de 20 a 23 de julho de 2008.

BRABET, Catherine; PALLET, Dominique. Os selos oficiais de qualidade dos alimentos na França e na Europa. In: SEBRAE. Valorização de Produtos com diferencial de qualidade e identidade: indicações geográficas e certificações para competitividade nos negócios. Brasília: SEBRAE, 2006.

CHADDAD, Fabio Ribas. Denominações de Origem controlada: um projeto de pesquisa. Caderno de Pesquisas em Administração, São Paulo, V.1, nº1,2°sem./1995.

Denominações de Origem Controlada: uma alternativa de valor no agrobusiness brasileiro. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo para mestrado em Administração. 1996.

COUTINHO, Edilma Pinto. Denominação de Origem como ferramenta de qualificação vinculada ao espaço de produção. XXIII Encontro Nacional de Engenharia de Produção. Ouro Preto, MG, Brasil, de 21 a 24 de outubro de 2003.

GIMENES, Maria Henriqueta Sperandio. Cozinhando a tradição: festa, cultura e história no litoral paranaense. Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em História, setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2008.

INAO. Insitut National de La recherche Agronomique. Les appellatons d’origine contrôlée: bases technologiques et socioeconomiques. Dez.1998. Disponível em: https://www.inra.fr/presse/dec98/c1.htm. Acesso em: 28 ago. 2000.

IPHAN. Informações gerais sobre patrimônio nacional. Disponível em: https://potal.IPHAN.gorv.br/portal. Acesso em: 03 jan. 2012.

LODY, Raul: Comer é pertencer. In: ARAÚJO, Wilma Maria Coelho; TENSER, Carla Marcia Rodrigues (orgs). Gastronomia: cortes e recortes. Vol I. São Paulo: Senac, 2007.

MORAN, W. The wine Appellation as Territory in France and California. Annals of the Association of American  Geographers, Washington, v.83,n.4,p.694-717, 1993.

PEREIRA, Lia Krücken. O processo de valorização de produtos alimentícios através das denominações de origem e qualidade: uma abordagem de gestão do conhecimento. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção da Universidade Federal de Santa Catarina para mestrado em Engenharia de Produção. Florianópolis. 2001.

TONIETTO, J.O. O Papel Econômico e o Atual Tratamento Jurídico das Indicações Geográficas. In: Seminário Nacional da Propriedade Intelectual, 23, 2003, São Paulo. Anais… São Paulo: Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, 2003, p.126-129.

TSCHOFEN, Bernhard. Culinarística e cultura regional: estudos culturais sobre “cozinha regional” na teoria e na prática. Revista Antares, Letras e Humanidades. N.03, v.2010.

TRENTINI, Flavia; SAE, M.Sylvia Macchione. Denominações de origem: aplicação do princípio do desenvolvimento sustentável na agricultura. Revista Mestrado em Direito. Osasco, ano 10, n.1.2009.


Bruna Mendes

BRUNA MENDES

Mestre em Hospitalidade, bacharel em Turismo e Licenciada em Pedagogia, mas acima de tudo, apaixonada pela cultura, turismo e gastronomia.

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